por Cynara Menezes
16.03.2012 19:17 (site Carta Capital)
Aziz e eu
Se
há algo bom de verdade nesta profissão de jornalista é ter a
oportunidade de conhecer gente sábia. Eu posso dizer que tive a honra de
conhecer alguns sábios ao longo da minha carreira. Um deles morreu
hoje, aos 87 anos, mansamente, em sua casa em Cotia (SP): o geógrafo
Aziz Ab’Saber. O Brasil perde um grande intelectual e um ser humano
maravilhoso.
Há
oito anos recebi da editora Record a incumbência de fazer um livro com o
professor Aziz, “O Que É Ser Geógrafo”, um depoimento em primeira
pessoa voltado para universitários. Começou então a amizade entre a
jornalista de 30 e poucos que nada sabia de geografia além do que
aprendera no colégio, e o maior geógrafo brasileiro, de quase oitenta.
Foram mais de 20 horas de entrevistas em sua sala no Instituto de
Estudos Avançados da USP, na verdade uma prosa prazerosa onde ele ia
contando, de forma absolutamente poética, a história de sua vida.
De
olhos fechados, o professor ia lembrando e, não raro, se emocionando,
com os relatos que vinham do passado, de muito antes de ele nascer, na
aldeia do Líbano de onde partira seu pai, Nacib, em direção ao Brasil.
Era tão vívida e colorida a narrativa de Aziz Ab’Saber que me
transportava até suas memórias: o mercado no Líbano; a feira em São Luiz
do Paraitinga, cidade em que o professor nasceu; as viagens de campo,
já na USP, com os mestres franceses que formaram a primeira geração de
uspianos e que ele tanto admirava: Pierre Monbeig, Roger Bastide, Jean
Tricart, Roger Dion, André de Cailleux, Jean Dresch, Louis Papi.
Os
papos se estendiam depois, na lanchonete da faculdade de Letras ou do
DCE –o professor sempre me convidava para um café com leite e um pão com
manteiga. Dava para perceber o quanto ele amava estar no ambiente
universitário, sobretudo entre os estudantes, que volta e meia vinham
cumprimentá-lo. Uma tarde, quando já havíamos terminado o ciclo de
entrevistas, ele passou em minha casa e disse: “Hoje você vai receber
uma aula de geomorfologia”. E me levou para um recorrido pelo interior
de São Paulo, na região de Itu, onde conheci o interessantíssimo parque
do Varvito, um tipo de rocha sedimentar única, formada pela sucessão
repetitiva de lâminas ou camadas.
Em
Salto, ele me mostrou a força das águas do Tietê, poluído mas vivo,
pulsante, ao contrário da placidez triste que o rio tem na capital.
Subimos o monumento à Nossa Senhora de Monte Serrat, onde Ab’Saber me
explicou in loco sua teoria dos redutos e refúgios: pedaços de paisagens
que pertencem a outro ecossistema. Em pleno interior paulista, me
mostrou areia e mandacarus típicos do Nordeste Seco. Sinal de que um dia
houve caatingas também ali. Eu, a discípula, arregalava os olhos e
aguçava os ouvidos.
Aprendi
muito com o professor. O principal, para mim, foi descobrir que havia
poesia na geografia. Nunca vou esquecer a linda expressão que usava para
definir a paisagem montanhosa de sua terra natal, São Luiz: “mar de
morros”. Inesquecível também a viagem a cavalo que me contou ter feito,
pequenino, dentro do jacá (cesto de vime), pela serra do Mar, descendo
até o litoral, em Ubatuba. Toda vez que vou à praia em São Paulo e
percebo como é úmida a mata atlântica, lembro do professor Aziz contando
dos “pinguinhos” que caíam no cesto de suas lembranças de menino e que,
ele, curioso, se esforçava para entender, por entre as tramas do jacá.
Aziz
Ab’Saber era um homem de esquerda, no sentido mais utópico do termo –
nada a ver com partidos políticos, como as pessoas teimam em confundir
hoje em dia. Foi dele a ideia, que deu a Lula, de fazer pelo País as
caravanas da cidadania. E lembro de como ficou chateado por nunca ter
sido convidado para ir ao Palácio do Planalto, depois da posse… Mais
triste ainda ficou quando seu amigo operário foi capaz de dizer, em
2006, em tom de pilhéria: “se você conhecer uma pessoa muito idosa
esquerdista, é porque ela tem problemas”. Ab’Saber foi de esquerda até o
fim. Até o fim o centro de suas preocupações como intelectual foram os
mais necessitados, os que viviam longe de tudo, os ribeirinhos, os
catadores de papel, os moradores das favelas. Até o fim desejou a
inserção social dos humanos desamparados e se indignou com a injustiça.
Sempre
que eu ligava para sua casa, mal ouvia eu dizer “alô!” e o professor
Aziz respondia: “Cynara! Minha amiga”. As amizades são assim, não
importa quantos anos se tem, de onde se vem, onde se nasce. As almas se
reconhecem. Vou sentir saudades, professor. Se existe Paraíso, espero
que tenha vista para o mar de morros.
Ecos do Sino Grande (Aziz Ab’Saber)
Ainda oiço. Trago na memória.
Na noite de São Luiz
Escuto ainda
As badaladas arrastadas
Do sino grande
Da matriz.
Na noite de São Luiz
Escuto ainda
As badaladas arrastadas
Do sino grande
Da matriz.
Coisa rara: tivemos que sair
Minha mãe, minha madrinha e eu
Para arejar o pequeno Iussef
Que estava com tosse comprida.
Minha mãe, minha madrinha e eu
Para arejar o pequeno Iussef
Que estava com tosse comprida.
Ruas desertas. Escuridão
Bairro e chuvinha
Cheiro do mato vindo da outra banda
Do rio.
Bairro e chuvinha
Cheiro do mato vindo da outra banda
Do rio.
No alto do morro
O cruzeiro iluminado que meu pai,
Poeta introvertido,
Mandou iluminar.
Primeiras elétricas luzes,
Que antecediam
O pontilhado imenso que
marcava as luzes do universo.
O cruzeiro iluminado que meu pai,
Poeta introvertido,
Mandou iluminar.
Primeiras elétricas luzes,
Que antecediam
O pontilhado imenso que
marcava as luzes do universo.
Saudades de menino
Entes queridos.
Lembranças sentidas.
E, para completar
As badaladas arrastadas do sino grande
Que saudades, Deus meu!
Entes queridos.
Lembranças sentidas.
E, para completar
As badaladas arrastadas do sino grande
Que saudades, Deus meu!
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