O
rio Madeira é o maior e mais caudaloso de todos os afluentes do rio
Amazonas, que forma a maior bacia hidrográfica do planeta. Na semana
passada, a 5ª unidade geradora da hidrelétrica de Santo Antônio começou a
operar em teste nesse rio. A usina, quando totalmente implantada, em
2015, terá 44 dessas máquinas. Poderá então produzir 3.150 megawatts de
energia
Santo Antônio fica a apenas sete quilômetros de Porto Velho, a
capital de Rondônia, onde está concentrado quase um terço dos seus 1,6
milhão de habitantes. Subindo o rio mais 130 quilômetros, na direção da
fronteira com a Bolívia, também está em construção — com um cronograma
ligeiramente mais atrasado — outra hidrelétrica do mesmo porte, a de
Jirau.Jirau e Santo Antônio, em conjunto, formarão, a partir da metade desta década, quando já estarão funcionando a plena carga, o terceiro maior polo de geração hidrelétrica do Brasil. Com potência de 6,5 mil megawatts, ficará abaixo apenas de Itaipu, no Paraná (14 mil MW), e Tucuruí, no Pará (8,2 mil MW). Para isso, absorverão investimento de mais de 30 bilhões de reais.
A atenção dada a esses empreendimentos pela opinião pública não corresponde à sua grandeza. Como acontece quase sempre quando o tema é a Amazônia, só em momentos de conflito e anormalidade é que a sociedade brasileira se interessa pelo que acontece na sua maior fronteira de recursos naturais. A rotina é de alheamento, quando não de ignorância mesmo.
Os brasileiros reagem epidermicamente se um estrangeiro manifesta interesse pela região. Uma vez cessado aquilo que se presume ser uma ameaça à soberania nacional, a Amazônia volta ao seu lugar, tão distante dos centros de decisão do país.
Não devia ser assim. Em vários pontos desse território, de tamanho equivalente ao da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, estão em curso verdadeiras epopeias. Aventuras com algumas das marcas da abertura de fronteiras no passado e a absorção de várias das novidades criadas pela inventividade humana contemporânea.
Para quem não segue o roteiro do dia a dia, pode se apresentar como surpresa a constatação de que, daqui a mais três anos, a Amazônia já estará fornecendo para o Brasil mais energia do que Itaipu, a maior hidrelétrica do mundo, apenas com os aproveitamentos de Santo Antônio e Jirau, no Madeira, e Tucuruí, no Tocantins (e há 30 outros em perspectiva). Se não for incluída a — cada vez mais problemática — metade paraguaia de Itaipu, a Amazônia estará transferindo o dobro da usina construída no extremo lado do país.
Com tanta grandeza envolvida, às vezes o detalhe falha. A empresa responsável por Santo Antônio diz no seu site que a hidrelétrica representará 4% de toda geração de energia do Brasil, mas abastecerá 40 milhões de pessoas. Jirau, que têm potência um pouco superior, movimentaria os mesmos números. É uma matemática indigesta: como 8% da energia fornecida atenderiam 80 milhões de pessoas, mais de um terço da população nacional?
Os números podem ser uma abstração, é claro. Mas há outras questões mais concretas para as quais não se conseguem respostas satisfatórias. Respostas que ajudariam a esclarecer e orientar o enorme desafio que é realizar grandes obras na Amazônia.
Para provocar o menor impacto à área de drenagem do rio Madeira, que chega a quase um milhão de quilômetros quadrados, a motorização das duas usinas foi concebida com turbinas bulbo. São turbinas que funcionam na horizontal, aproveitando o curso do rio, e não na vertical, como as grandes máquinas instaladas em Itaipu e Tucuruí.
Dessa maneira, não seria preciso formar reservatórios, inundando as margens do rio e afogando florestas, com a cadeia de efeitos negativos sobre o meio ambiente. As 88 turbinas de Santo Antônio e Jirau precisam de uma queda de 14 metros, três vezes inferior à de Tucuruí, que formou o segundo maior lago artificial do Brasil por causa do represamento do Tocantins, com três mil quilômetros quadrados de reservatório.
Mas essas máquinas funcionarão direito? Santo Antônio e Jirau serão as maiores hidrelétricas do mundo com turbinas bulbo, por usarem uma grande quantidade de máquinas de alta potência, enquanto as outras usinas em funcionamento têm poucas turbinas e de baixa potência.
Os construtores asseguram que tudo foi bem estudado e dará certo. Mas pelos problemas surgidos quando as primeiras máquinas entraram em funcionamento, tem-se a sensação de que há um componente de laboratório nesses mastodontes de concreto levantados sobre o leito de um rio monumental como o Madeira. Serão cobaias nesse novo capítulo da engenharia?
Outra sensação é ainda mais desconfortável: a pressa imposta ao ritmo das obras. Esse andamento acelerado não permite, nem mesmo à parte mais atenta e preparada da sociedade, acompanhar o que as empresas executam. Na época da ditadura, foi assim que Itaipu e Tucuruí foram construídas, entre os anos 1970 e 1980.
Mas agora estamos numa democracia — e a mais duradoura da história brasileira. O cronograma não devia ser mais espaçado? Melhor ainda: nenhum fato concreto seria criado antes da dissipação das dúvidas em relação à conveniência ou viabilidade do empreendimento.
Esses mastodontes de concreto, aço e bilhões de reais, a maior parte dos quais saindo dos cofres públicos, parecem ter sua própria lógica, indiferente ao que acontece em torno e além.
Pois se a atividade industrial está em queda e há excesso de oferta de energia, por que a pressa de fincar essas obras na difícil e complexa Amazônia, transferindo-a por milhares de quilômetros até os centros produtores, do outro lado do Brasil?
Parece que tudo que a musa canta e inspira cessa quando ecoa o tilintar do que mais importa: a moeda que sai pelas torneiras do tesouro nacional.
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