tem sido palco de protestos pró-democracia da maioria
xiita contra a monarquia sunita comandada pelo rei Hamad Bin Issa
al-Khalifa. Os manifestantes têm sido reprimidos pelo exército do
Bahrein e de países vizinhos. Pelo menos 35 pessoas morreram e centenas
foram feridas.
Segundo os manifestantes, o gás brasileiro usado
para reprimi-los teria até causado a morte de bebês. “Há algum tipo de
ingrediente que, em alguns casos, leva as pessoas a espumarem pela boca e
outros sintomas”, disse a ativista de direitos humanos Zainab
al-Khawaja ao
jornal O Globo.
Mas,
quase um mês depois da denúncia, pouco se sabe como o gás fabricado
pela empresa Condor Tecnologias Não Letais foi parar nas mãos de tropas
que reprimem manifestações pró-democracia.
A empresa, sediada em
Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, afirma que não exporta para o Bahrein,
mas diz que vende para outros países da região, sem identificá-los.
Toda
exportação de armas, mesmo não letais, é aprovada pelo Itamaraty e pelo
Ministério da Defesa. Mas, uma vez aprovada, o governo não pode fazer
muito. O próprio Itamaraty reconhece que não tem poder de investigar:
depois do escândalo do Barhein, a assessoria do Itamaraty informou que o
ministério está apenas “observando com interesse” o desenrolar da
história.
Fica a cargo da empresa averiguar o que aconteceu.
“É
um contrato entre partes privadas. Pode até envolver um governo
estrangeiro, mas a responsabilidade pelo seu produto é da empresa”, diz a
assessora de imprensa do Itamaraty. “Os contratos geralmente proíbem a
revenda. A Condor está tentando rastrear o seu produto, estamos num
diálogo permanente.”
A situação é pior porque não existe
legislação internacional para o comércio de armas leves. “No caso de
armas não convencionais, a atuação do Itamaraty é mais direta, mas no
caso de armas convencionais, não existe um regime internacional para que
a gente possa aconselhar em algum sentido”, reconhece.
Nesse
contexto, é bem provável que casos como esse aconteçam cada vez mais.
Enquanto o comércio de armamentos pesados, como os super tucanos, chama a
atenção da imprensa, é no ramo de armas leves que o Brasil tem uma
atuação crescente no mercado internacional.
Segundo
dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
(MDIC), o valor das exportações de armas leves triplicou nos últimos
cinco anos: foi de US$ 109, 6 milhões em 2005 para US$ 321,6 milhões em
2010 (em 2011, houve um recuo para US$ 293 milhões).
Contando
apenas as armas de fogo, a quantidade impressiona. Foram 4.482.874 armas
exportadas entre 2005 e 2010, segundo um levantamento inédito do
Exército feito a pedido da agência Pública. Ou seja: 2.456 armas por
dia.
O Exército se negou a dar detalhes como venda ano a ano, empresas exportadoras e países de destino.
Assim, cabe às ONGs internacionais tentar desvendar os detalhes da exportação brasileira.
Todo
ano, o Instituto de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em
Genebra, realiza o Small Arms Trade Survey, o mais respeitado estudo
sobre essa indústria. Em 2011, o Brasil foi o 4º maior exportador
mundial de armas leves, atrás apenas dos Estados Unidos, Itália e
Alemanha.
No ranking de armamentos pesados, somos o 14º, de
acordo com o Instituto Internacional de Estudos da Paz de Estocolmo
(SIPRI). Nos dois casos a liderança é dos Estados Unidos, com larga
vantagem.
Por trás do crescimento, o apoio do governo
No
dia 30 de setembro de 2011, a presidenta Dilma Rousseff enviou ao
Congresso uma medida provisória (MP 544) – que deve ser regulamentada
nos próximos meses - com o objetivo de fortalecer a indústria nacional
de armas. Entre as medidas fixadas pela MP está um regime especial de
tributação que atende a uma reivindicação histórica da industria – a
isenção do pagamento de IPI, PIS/PASEP e COFINS nas compras
governamentais – e suspende a taxação sobre a importação de insumos para
a fabricação de produtos de defesa. O setor também foi incluído entre
os que têm direito à cobertura pelo Fundo de Garantia à Exportação
(FGE), seguro de proteção contra riscos em operações comerciais
administrado pelo BNDES.
Três dias depois, o ministro da Defesa
Celso Amorim, acompanhado dos três comandantes das Forças Armadas,
participou de um jantar na Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo junto aos principais fabricantes de armas do país – uma clara
sinalização de apoio à produção nacional, política que tem marcado o
ministério nos últimos anos.
O antecessor de Amorim, Nelson Jobim
(2007-2011), foi um dos principais defensores da “revitalização” da
indústria de armas, que vinha em baixa desde o final da década de 80,
quando deixou de exportar para o Iraque.
Sob seu ministério foi promulgada a
Estratégia Nacional de Defesa,
de 18 de dezembro de 2008, que incluiu o fomento da indústria de armas
entre suas metas, priorizando a compra de produtos nacionais para as
Forças Armadas e comprometendo-se com incentivos à exportação. “O Estado
ajudará a conquistar clientela estrangeira para a indústria nacional de
material de defesa”, explicita o documento, que acrescenta:
“A
consolidação da União de Nações Sul-Americanas poderá atenuar a tensão
entre o requisito da independência em produção de defesa e a necessidade
de compensar custo com escala, possibilitando o desenvolvimento da
produção de defesa em conjunto com outros países da região”.
O
mesmo documento prevê linhas de crédito especial do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) “similar às já concedidas
para outras atividades”.
O professor Renato Dagnino, do
Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP, que
analisou o documento conclui: “a Estratégia Nacional de Defesa acata as
principais reivindicações do lobby pela revitalização da indústria”.
E
o lobby quer mais. O Comitê da Cadeia Produtiva da Indústria de Defesa
(Comdefesa), organizado pela Federação das Indústrias de São Paulo
(FIESP), pleiteia uma cota fixa e inalterável de 3,5% do PIB para
investimentos no setor. Alguns representantes pedem que uma parte dos
royaltes do pré-sal sejam destinados ao setor de defesa.
Procurado
pela reportagem, o Ministério da Defesa informou através da sua
assessoria que “tem feito gestões a entidades de fomento, como BNDES e
FINEP, com o intuito de disponibilizar financiamento para empresas que
se enquadram na chamada indústria de defesa”.
O BNDES informa que
entre 2009 e 2011, fez empréstimos no valor de R$ 71 milhões para
empresas do setor. A maior beneficiária foi a CBC – Companhia Brasileira
de Cartuchos, seguida pela Forjas Taurus SA.
Clique aqui para ver a tabela.
A
APEX – Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos,
também entrou em ação para “aumentar a exportação de materiais de defesa
e segurança e a quantidade de empresas exportadoras”, segundo sua
assessoria, promovendo a participação da indústria brasileira em feiras
como a Latin America Defence & Security, a maior e mais importante
do setor de defesa e segurança da América Latina.
Com esse apoio,
as empresas se lançam à conquista de novos mercados, principalmente na
África e Ásia. Como no caso da Condor, a fabricante de gás lacrimogêneo
que se nega a divulgar com que países negocia, pouco se sabe sobre o
destino dos armamentos fabricados no Brasil e não há nenhum debate
público sobre isso. A regra, nesta indústria, é a falta de
transparência.
Falta de transparência: preocupação nacional e internacional
Não
existe nenhuma estimativa oficial sobre a produção de armas leves no
Brasil. A indústria não informa o quanto produz, e – diferentemente de
outros países – não há nenhum banco de dados do governo a esse respeito.
Quando se trata de comércio internacional, a transparência é ainda menor.
A Pública procurou o Exército, que forneceu dados gerais, mas não quis dar detalhes.
Desde
outubro de 2010, existe um departamento que monitora as vendas para o
exterior, o Sistema de Gerenciamento de Banco de Dados de Exportação de
Produtos de Defesa (SGEPRODE). Os dados nunca foram disponibilizados ao
público.
Nos dias posteriores ao escândalo no Bahrein, chegou a
se ventilar na imprensa que o Ministério da Defesa teria um projeto de
lei para um banco de dados públicos sobre aquisições e vendas de
armamentos. Mas, procurado pela Pública, o ministério negou
veementemente qualquer plano nesse sentido.
“O Ministério da
Defesa desconhece o envio da legislação citada na matéria do jornal
Folha de S. Paulo”, disse, por meio de nota. “A regulamentação da MP 544
prevê a elaboração de um cadastro de empresas. No entanto, ainda não
está definido o formato em que se dará a divulgação dessa informação”.
O
Instituto de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento de Genebra tem
um “barômetro” da transparência para avaliar as informações fornecidas
por grandes atores globais no mercado de armas leves. Brasil nunca se
saiu muito bem. Desde 2001, tem sido um dos piores avaliados entre os
principais exportadores, perdendo apenas para a Rússia e a China.
No
último estudo, de 2011, o país é o 38º colocado numa lista de 50
países. O problema, segundo os pesquisadores, é que o Brasil não produz
relatórios oficiais nem envia dados para um instrumento chamado UN
Register, que registra a transferência de armas leves.
“O Brasil
não publica nenhum relatório anual sobre exportação de armas e
geralmente relata ao UN Register que houve ‘zero’ exportações de armas
leves”, diz um relatório publicado em junho de 2010. “Os dados da
alfândega não informam quantas licenças foram expedidas e quantas foram
recusadas (…). No nível regional, o Brasil é o menos transparente”.
Além
disso, diz o instituto, há evidências de que o Brasil registra
“sistematicamente” de maneira errônea as exportações de revólveres e
pistolas, como sendo “armas de caça”, o que gera confusão.
“Nós
inferimos que o Brasil quer manter alguns segredos, porque fazer isso
seria benéfico para as empresas. Mas a conseqüência é que se sabe menos
do que devíamos sobre o que o Brasil está fazendo”, diz o pesquisador
Nicholas Marsh, da Iniciativa Norueguesa em Transferência de Armas
Leves.
Muitas vezes o Small Arms Survey tem que usar dados
declarados pelos importadores para realizar sua avaliação anual. Os
resultados muitas vezes são superiores aos declarados pelo Ministério do
Desenvolvimento.
Em 2007, por exemplo, o relatório estimou as
vendas de armas leves brasileiras em 234 milhões de dólares, enquanto o
MDIC estima que tenha sido de 201 milhões. Em 2008, o valor do Small
Arms Survey é de 273 milhões, enquanto o MDIC estima que tenha sido 260
milhões de dólares.
Como não existe legislação ou um órgão
internacional que monitore esse comércio, não há uma base de dados
mundial, e nenhum país é obrigado a reportar-se a ninguém. Os dados do
UN Register são enviados de maneira voluntária.
“Isso significa
que há grandes fluxos de armas acontecendo no mundo, e ninguém sabe
disso. Assim as armas acabam indo parar em lugares onde não deviam”, diz
Nicholas Marsh. “O pior é que armas duram muito. Se é bem cuidado, um
revólver pode durar cem anos. Na Líbia, no começo dos conflitos, havia
gente carregando armas da Segunda Guerra”.
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