Livro define "BBB" e outros reality shows como ritos de tortura
Uma mulher desperta em um quarto com um aparelho em sua cabeça que, se não desarmado a tempo, se abrirá, rompendo sua mandíbula e vergando seu crânio ao avesso; ao seu lado um homem desmaiado. Em um monitor de TV, uma voz lança o desafio: com um bisturi ela deveria abrir o ventre de seu companheiro de clausura e lá procurar a chave que desarma o aparelho.
A cena descrita é da série de filmes de terror "Jogos Mortais", mas para a socióloga Silvia Viana, professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV), o roteiro se encaixa ao formato dos reality shows, como o "Big Brother Brasil", da Rede Globo, no ar há 13 anos. Em seu livro, que acaba de ser lançado, "Rituais de Sofrimento" (editora Boitempo, 192 págs., R$ 37), ela define o programa como um rito de tortura.
A comparação entre o filme "Jogos Mortais" e o "BBB" não foi feita pela pesquisadora, mas por um participante do reality show, em meio a uma prova de resistência. Ele estava chamando a atenção para a tortura a qual estavam sendo submetidos naquele instante. Mas, as semelhanças não se encerram aí. Segundo a socióloga, são muitas.
Dividido em quatro partes, "Show de horror", "Das regras", "Dos jogadores" e "Das provas", o livro é resultado de uma pesquisa de doutorado de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). A autora conta que a pesquisa teve início quando se debruçava sobre outro estudo, de gestão da empresa capitalista flexível. "Na metade do processo, assisti, pela primeira vez, a um reality show", diz. Era um episódio do ‘BBB’ no qual três participantes foram levados ao "Quarto Branco". "Uma forma indisfarçada de tortura por privação de sentidos", comenta.
Naquele momento, ela teve o insight que levou ao tema do livro. "Percebi não apenas a violência levada a cabo pelo programa, mas também sua afinidade com a brutalidade do mundo atual e do trabalho nos dias de hoje", diz. Para a socióloga, é esse o ponto mais relevante da questão: entender a aproximação entre a vida real e o mundo reproduzido em programas de TV, em especial os reality shows.
O mais bizarro é o normal
O mais estranho, diz a socióloga, é justamente que a "bizarrice" é o normal. "Isso é tanto nos reality shows como do outro lado da tela". Não é à toa que o mentor do projeto tenha sido o célebre Franz Kafka, que retrata em sua obra o desespero do ser humano, atordoado frente aos pesadelos labirínticos da existência e do mundo cotidiano, impessoal e burocrático – um texto do escritor tcheco abre o primeiro capítulo.
Uma imagem que, para a socióloga, resume o absurdo generalizado dos reality shows é o "Big Fone". "Uma voz de comando distorcida transmite aos participantes ordens malucas e cheias de exceções, punições adicionais, obrigatoriedade de sigilo até determinado momento, colares disso e daquilo". E quanto mais escorregadios os comandos, maior o zelo em seu cumprimento, prossegue a pesquisadora. "Não importa que a ordem seja sair da casa vestido de galinha e cacarejar assim que um sino tocar, e não importa que os participantes tenham plena consciência de que se trata de uma situação ridícula e humilhante: o comando será cumprido à risca".
"O mesmo não ocorre em processos seletivos de empresas?", questiona. "Nunca se sabe exatamente o que o empregador busca com aqueles testes de caligrafia, dinâmicas de grupo, perguntas a respeito de seus hobbies, provas das mais esdrúxulas, mas é fundamental que se faça, seja lá o que for, seja lá como for".
Em sua pesquisa, a socióloga mergulha nessa "zona cinzenta" assombrosa, em que os papéis de vítimas e violentadores não estão claramente definidos. Uma pergunta inevitável é: o que leva uma pessoa a se sujeitar aos ‘rituais de dor e sacrifício’ dos reality shows? A explicação mais comum é de que as pessoas topam participar pelo prêmio, pela fama ou por exibicionismo, de que participantes agem por pura racionalidade instrumental, enquanto outros são levados por um desejo inconsciente. Silvia recusa ambos.
Para ela, o buraco é ainda mais embaixo. "Não se pode afirmar que prêmio e fama justifiquem a participação: as chances de ganhar o prêmio são pequenas e o sofrimento a que serão submetidos é desproporcional ao ganho". "Quanto à fama, já é pública e notória a pecha que carrega um ex-BBB, com raríssimas exceções (que confirmam a regra), os participantes de reality shows são relegados ao esquecimento".
Silvia avalia que afirmar que os participantes são levados pelo desejo de exibição seria desconsiderar todo o sofrimento pelo qual passam. "Eles não estão lá gozando, nem mesmo por alguma perversão masoquista. Seu sofrimento é próprio de quem tem alguma tarefa a cumprir, é próprio do trabalho".
Oportunidade imperdível ou lixo descartável?
A pesquisa por trás do livro se propõe à tarefa nada simples de entender o fenômeno dos reality shows, afinal por que tantos querem participar do programa televisivo. Silvia arrisca um caminho. "Temos que levar em consideração aquilo o que os próprios participantes afirmam a respeito de seu voluntariado: trata-se de uma ‘oportunidade imperdível’. Mas oportunidade para quê?", indaga. Os critérios para alcançar o prêmio, segundo ela, são imponderáveis, e a fama resultante é infâmia. Ou seja, não faz sentido.
"O problema da participação é precisamente o fato dela não apresentar nenhum por que, não tem sentido social, por mais que caibam aí inúmeras racionalizações individuais", analisa. De acordo com o estudo, as pessoas participam porque se tornou um imperativo em nossa sociedade, "completamente desprovido de conteúdo", reitera a autora. "Por isso eu não comparo os reality shows a rituais, eles são rituais", afirma. Reality show é "mercadoria de quinta categoria", diz Silvia. "Os próprios produtores não fazem questão alguma de disfarçar a baixa qualidade estética, informativa, cultural ou o que mais pudesse justificar sua existência", completa. Para ela, nem mesmo o público que acompanha os programas defende alguma possível qualidade. "Ninguém sustentaria que aquilo é algo mais que lixo descartável".
A crítica fundamental, e corrosiva, em "Rituais de Sofrimento" é de que assim como os participantes, os telespectadores assistem (e também participam, o que é fundamental) cientes de que não há nisso qualquer sentido ou finalidade. “Simplesmente respondem ao comando, que obriga a ‘estar no mundo’, ‘topar’, ‘participar’", diz.
Quanto à teoria de que o público é ingênuo, manipulável, iludido ou perverso, para a pesquisadora, nada disso explica o fenômeno, apenas indica a arrogância de quem a faz. "Todos estamos submetidos ao imperativo vazio da participação. Assim como aqueles que votam para a eliminação no BBB trabalham de graça para a Globo, aqueles que enviam seus vídeos para o You tube ou postam comentários no Facebook trabalham de graça para essas corporações. Sabemos disso e, mesmo assim, fazemos. Nossa ilusão reside na prática, não nas consciências. Nosso mundo é bizarro", arremata.